Adriano Azevedo

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O 1° Seminário de Preservação do Patrimônio Cultural Compartilhado entre Brasil e Nigéria aconteceu como resultado de uma articulação entre cinco Terreiros de Candomblé de tradição Nagô-Iorubá da Cidade do Salvador – todos tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. O objetivo principal deste movimento era estabelecer um canal de diálogo entre os dois países, proporcionando uma ampla discussão sobre as políticas públicas de preservação e salvaguarda do patrimônio compartilhado. Este encontro contou com a presença da Realeza da Cidade de Oyó, Vossa Majestade Imperial, o Alaafin Oyó – Obá/Rei LamidiAdeyemi III; sua corte; lideranças políticas de ambos os Países e a comunidade de Santo da Bahia. 

Em 29 de julho de 2014, o Ilê Axé Iyá Nassô Oká – Casa Branca do Engenho Velho foi o primeiro Terreiro a receber o Alaafin. No mesmo dia, o Ilê Axé Oxumarê o recebeu com o mesmo esplendor. Na manhã seguinte, foi à vez do Ilê Axé Opô Afonjá e,no período da tarde, foi o Ilê Axé Mariolajé – Terreiro do Alaketu. Por fim, em 31 de julho, o Rei visitou o Gantois – Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê e a grande Pedra de Xangô, localizada no bairro de Cajazeiras, primeiro bairro planejado de Salvador, onde grandeparte da população negra e de Santo reside.

No que concerne a mim, a chegada do Rei no Opô Afonjá foi super emocionante. Coloquei uma quartinha com água na porteira e, antes de ele entrar, pingou três vezes no chão cochichando bem baixinho com Onilé, o Deus da terra. Fogos estouravam no céu com muita alegria e, ao som dos batás - tambor falante, que era tocado pela comitiva e se envolvia harmonicamente com os Atabaques tocados pelos Alabês do Opô Afonjá, o Alaafin erarecebido com honrarias e muita felicidade pelo povo da terra. Os clarins – instrumento de sopro muito utilizado pelos militares e em cerimônias solenes, davam um brilho especial à orquestra de Ilus – Tambores, todos harmoniosamente tocados. Imediatamente uma canção em Iorubá – comumente cantada pra Xangô aqui no Opô Afonjá – traduzia:“O que vocês acham do Rei?” e um coro bem alinhado respondia: “O rei é o dono do Axé. Aquele que é misterioso. Aquele que é vestido de beleza. O rei é o dono do Axé!”.

A Iyalorixá Mãe Stella de Oxossi; Obá Terê - Gilsethede Xangô – ambas in memoriam; a Iyakekerê Ditinha de Iemanjá e a Iyá Dagan Mundinha de Ogunreceberam o Rei na varanda de Afonjá. A comitiva se deslumbrava com o espaço físico. Eles olhavam as árvores; o chão de terra vermelha; as casas; as pessoas. Depois dos cumprimentos – seguindo oroteiro, subimos para o Ilê Ibó, casa de adoração aos Ancestrais. O Corpo de Ojés – Sacerdotes do culto aos Ancestrais Masculinos, os Egungun, liderado por Balbino Daniel de Paula, hoje, Alapini – sumo sacerdote do culto, cuja outorga foi concebida em setembro deste ano, na festa de Agboulá, sendo ele o sucessor de Mestre Didi falecido em 2013, mas que, naquela época, de Paula ainda respondia como o Alagbá Babá Mariwô do Ilê Agboulá – Chefe deste Terreiro localizado na Ilha de Itaparica e, que também foi tombado pelo IPHAN em 2015, deu início à cerimônia saudando a Terra. Ojé Adêniji do Ilê Axipá que também é Ogan do Opô Afonjá, Jefferson Ferreira, entoou um oriki reverenciando IyáObá Biyi, Mãe Anninha, a fundadora do Opô Afonjá. A cada cantiga o Rei e sua comitiva acompanhavam cantando conjuntamente, mostrando o entendimento no diálogo, o que tornava aquele momento completamente mágico.

Do Ilê Ibó para o Ilê Ṣangò – casa de Xangô, as crianças da escola do ensino fundamental situada dentro do Terreiro e que leva o nome da fundadora do Opô Afonjá: Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, em cuja grade curricular constam disciplinas acerca da cultura africana, cantavam o hino do Opô Afonjá composto por Mãe Anninha. O rosto do Alaafin era só alegria em ver aquela quantidade de crianças do Novo Mundo cantando em Iorubá.

Quando o Rei entrou no quarto de Xangô, seu olho brilhava. Tirei do bolso dois orobôs e dei pra ele. Ele me olhou e sorriu. Pegou os orobôs de minha mão, partiu com os dentes, levantou e os jogou no chão,aos pés de Afonjá. Daí disse: “Alaáfia!!!” E todos gritaram: “Kawô Kabiêsi!!!” Ele repartiu o orobô com seus filhos e comeu o restante. Olhou para o altar de Xangô e disse – emocionado: “Estou mesentindo em casa!”. Para ele foi muito impactante encontrar do outro lado do Atlântico uma história que foi extraída de sua origem de forma violenta há séculos atrás e que hoje é perpetuada por descendentes brasileiros que lutam para a preservação deste patrimônio.

Já na varanda da casa de Xangô, ele sentou-se de frente para a multidão que esperava ansiosa pelo seu pronunciamento. Um grupo formado por mulheres da terceira idade – Grupo Fênix de Teatro e Dança, liderado por Maria do Carmo Neta – minha tia materna, apresentou um poema e um número de dança com o tema África. Em seguida, Fábio Lima, Bossi Òla, falou sobre a trajetória de Mãe Anninha, o Corpo de Obás – Ministros de Xangô e a importância deste grupo para o Terreiro.

Sempre antes de falar, o Alaafin segue uma tradição onde a Rainha entoa um oriki. Não sei por que, mas de todos os momentos em sua estada aqui no Brasil, acredito que sua vinda ao Opô Afonjá tenha sido a mais enérgica. Digo isto porque a energia era sentida como uma reação magnética, em que os pêlos do corpo arrepiavam a cada intervenção. Talvez essa percepção de sensações tenha se dado pelo fato de estarmos na casa de um Orixá vivo em sua essência e em plena quarta-feira. A Rainha,então, entoou o oriki, e a sua voz aguda, segura e bem entoada começou a ficar trêmula, como se fosse chorar. O rei automaticamente tomou o microfone de suas mãos e disse: “Ela chamou Xangô com muita veemência... Consigo sentir sua energia presente. Vamos parar por aqui!”. E deu aquele sorriso desconcertado.

O Rei saiu daqui maravilhado com tudo que viu. Por diversas vezes falava do orgulho que sentia em ver tudo aquilo de perto. Da perpetuação da tradição e da similaridade dos elementos. Nós somos um pedaço da África.  A comunicação; o sangue que corre nas veias; os costumes e a fé. Tudo é a continuação desta tradição, por isso, nossa luta é diária e contínua, para que a preservação deste legado continue sendo mantida. Em conversa com tia Stella, ela me disse o seguinte: “Nossa Majestade nos deixou como exemplo a dignidade, consistência, determinação e força de um povo. E é essa atitude que devemos levar pra toda a vida. Sinto muito orgulho em descender de uma raça que pisou pela primeira vez no Brasil na qualidade de escravo e que hoje retorna como Rei!”. O Alaafinpartiu para a eternidade em 22 de abril de 2022, aos 83 anos, sendo o Rei mais longínquo do Império de Oyó, tendo governado por 52 anos.

Kabiêsi!

Salve a Majestade!

 

 

*Fotos de Tacun Lecy*


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