Adriano Azevedo

Reafricanização: até onde é benéfico às tentativas em adaptar o que é visto nos dias de hoje em África, ao tradicional de outrora da diáspora brasileira?
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Há mais de 200 anos se instituía na Cidade da Bahia, em Salvador, um local para pedir intercessão aos deuses africanos (vide meu primeiro artigo publicado aqui no Farol). Naquela época os negros tinham somente como transmissão de conhecimento a oralidade e as reminiscências iconográficas de sua terra natal, onde a escrita e outros métodos tecnológicos da época, não eram prerrogativa de gente preta. Ainda hoje nos Terreiros, a oralidade permanece como forma de transmissão de conhecimento, mas há quem prefira consultar o “Pai Google”, e receber suas orientações via internet. Contudo, é importante dizer que, conseguimos encontrar pessoas sérias no mundo virtual, onde dúvidas são esclarecidas, das quais podem ser publicizadas sem que macule o que é sagrado, mas, a experiência vivida dentro do Terreiro onde a coleta destas informações é obtida a partir da observação, ainda é o caminho mais certo. Certa feita Mãe Stella me disse o seguinte: “Quando o mistério é revelado ao não iniciado, estamos fadados a perda do encantamento!” 

Evoluir se faz necessário em toda e quaisquer circunstância, no entanto, adulterar ou burlar uma tradição, seja ela profana ou religiosa, perde completamente o sentido da palavra, onde aquelas histórias, fatos, ritos e costumes que foram passados de geração a geração tende cair no esquecimento. Essas linhas fazem parte de uma militância onde atuo dentro das redes sociais, frisando que o religioso tem que ser tratado com respeito, sobretudo, preservando o legado que se foi transmitido pelos mais antigos.

Um estudioso norte-americano dos meios de comunicação chamado Henry Jenkins, em seu livro Cultura da Convergência, traduz o ato de convergir como: “mudanças tecnológicas, industriais, culturais e sociais no modo como as mídias circulam em nossa cultura.” (JENKINS, 2008, p. 45). Hoje todo mundo com um celular na mão se torna um cinegrafista e jornalista, lançando nas redes sociais as mais diversas informações, onde o receptor tem que tomar muito cuidado ao conteúdo gerado, pois podemos cair em armadilhas falaciosas. A partir deste panorama, a oralidade que é a transmissão de conhecimento dos Terreiros, segue convergindo com esta cultura contemporânea dos canais eletrônicos, aonde cada vez mais o tradicional vem perdendo espaço, além de ser manchado em situações inapropriadas que são expostas nas redes, e que aos olhos do não iniciado, pode haver a deturpação carregada de preconceito e intolerância, o que sempre nos traz grandes problemas.   

Além desta evolução tecnológica que contraria muitos tradicionalistas, existe outro grande incômodo que é a reafricanização do Candomblé nos dias atuais. No texto sobre os Obás de Xangô, onde falo sobre a ida de Martiniano Eliseu do Bonfim à África, onde ele confirma que tudo o que era feito aqui no Brasil naquela época, mesmo que adaptado a partir das circunstâncias da escravidão e anos mais tarde pela perseguição policial, tudo estava dentro dos preceitos ritualísticos que acontecia em África. Hoje, com a facilidade que se tem de atravessar o Atlântico, curiosos vão à África, e quando retornam tentam implantar o que presenciaram nos dias de hoje, que por algum motivo tiveram acesso a essas informações, tentando deslegitimar o legado de mais de 200 anos, refutando o que foi passado de geração a geração.

Casos bem recentes, onde pessoas que se denominam adeptas a um “culto tradicional”, onde as práticas acontecidas em África nos dias de hoje, e, que sem a menor dúvida aconteciam também em tempos passados, mas que sem a existência e interferência da tecnologia eletrônica, faz com que questionamentos inapropriados sejam expostos, ao modo que deprecia toda uma história de quem nunca foi na África, mas que ainda tivera ido, compreende que a tradição deixada pelos negros que aqui chegaram, precisa ser preservada. Até por que o que é tradicional pra mim, talvez não seja pra o outro. Entretanto, é preciso estar atento ao que é certo e errado.

Exemplo de tradição remota aqui no Brasil é o culto aos Egungun. Ter dúvidas é normal, e compreensível. Não acreditar, também é um direito de cada um. Ninguém é obrigado a isso. Agora, o que é exigido é o respeito! Em África vemos pessoas tirando fotos ao lado dos Eguns, tocando-os e fazendo selfies. Aqui no Brasil, isso é extremamente proibido. Ai é onde entram os questionamentos daqueles que se dizem “tradicionais” de África, onde indagam: “Lá pode! Por que aqui não pode?” E aresposta é bem simples: ESTAMOS SEGUINDO A TRADIÇÃO QUE FOI DEIXADA PELOS MESMOS AFRICANOS, QUE HOJE EM ÁFRICA PERMITEM QUE ISSO ACONTEÇA POR MOTIVOS QUE NÃO ME CABE AQUI FALAR. 

Numa reportagem ao Globo Repórter (não me lembro qual ano) dona Juanita Elbein dos Santos, antropóloga e viúva do Mestre Didi – in memoriam, sacerdote supremo do culto aos Eguns, o entrevistador pergunta: “O que garante que dentro daquela roupa não tem uma pessoa?” E dona Juanita responde: “Nada garante nada! Só que a gente tem que aceitar o conceito da filosofia, e da maneira de viver de um povo!” Quando me iniciei no culto a Egun, tia Stella me contou uma história do velho Martiniano. Quando ele descobriu que aqui existia o culto de Egun, ficou incrédulo. Ele havia se iniciado em África, e lá o culto era envolto de mistérios, que até mesmo os africanos temiam falarsobre o assunto. Daí então ele seguiu pra Itaparica, para apurar tal fato. Chegando lá, pelo meio da festa um Egun parou em sua frente e perguntou o que ele estava fazendo ali, já que ele não estava acreditando. O velho Martiniano se levantou, se apresentou como Ojé Ladê, e pediu desculpas perante todos os presentes. Naquele momento Bonfim teve mais uma comprovação da africanização legítima aqui no Brasil. Pois mostrou que a resistência de um culto extremamente limitadoconseguiu atravessar o Atlântico e sobreviver. 

Em 2014, tivemos no Brasil a vista do Alaafin Oyó, Lamidi Olayiwola Adeyemi III, in memoriam - Rei da Cidade de Oyó na Nigéria. O Monarca visitou os cinco Terreiros de Candomblé mais antigos de Salvador. Casa Branca, Gantois, Opô Afonjá, Alaketu e Oxumarê, e na visita ao Opô Afonjá, onde tive o privilégio de ter contato direto com Vossa Majestade, ele disse: “Mesmo com os sofridos anos da escravidão. Mesmo com as adaptações. Mesmo divididos pelo Atlântico, tudo o que estou vendo aqui me faz sentir em casa!” Ou seja, esta tradição não pode ser mudada pelo simples fato de alguém ter idohoje à África, e a partir do que se viu por lá, tentar introduzir de forma grotesca o que já estamos fazendo aqui há mais de 200 anos.

A reafricanização começou quando os primeiros negros aqui chegaram. Portanto, mais tradicional que o Candomblé, só indo morando na África.

E tenho dito!


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