Crônica
Eu e o comandante poderíamos nos tornar amigos confessionais. Viajamos um ao lado do outro no ônibus, numa viagem de dois dias a Santiago, no Chile. Ele tentava puxar assunto, mas era muita história e uma biografia enorme que nos separava.
Eu e o comandante não concordávamos em uma série de coisas sobre sociedade, sobre política e até mesmo sobre aquela viagem. As suas reticências eram mais do que claras: ele pegaria um cara como eu e colocaria no Exército, porque “as Forças Armadas me fariam um homem completo”.
O comandante não compreendia argumentações. Na verdade, ele não se esforçava, nem mesmo tentava. Ele sabia que a questão, ali, não eram as diferenças de opiniões ou falta de um corretivo (no caso, à minha pessoa); era eu e ele.
Eu e o comandante somos – ou éramos (nunca mais o vi) – de mundos diferentes. Foi naquela viagem de mais de 48 horas, um tanto desgastante muito companhia ao lado que insistia em falar, que entendi o peso de gerações.
A minha cresceu rápido, aprendeu com o passado; a dele desconta na nossa a tensão e a nebulosidade do seu tempo, nos chama de desvairados. O desvairado era o comandante, que em plena década de 2010 ainda enxergava a Guerra Fria em tudo, inclusive numa ordinária conversa durante aquela ordinária viagem de ônibus.