Adriano Azevedo

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A série “Inesquecíveis” foi o meio que encontrei para rememorar alguns personagens do Ilê Axé Opô Afonjá que tive a honra e o privilégio de conhecer, ainda que tenha sido em um curto espaço de tempo. Como já disse aqui anteriormente, alguns destes Inesquecíveis não terão seus dados biográficos aqui citados por diversos motivos. Muitos se foram e não deixaram herdeiros que pudessem contribuir para este trabalho de memórias – o quê, certamente, tornaria este conteúdo mais robusto. Não obstante, escrevo a partir das minhas reminiscências. Quem sabe futuramente, com um trabalho de pesquisa mais apurado, eu consiga compilar todas essas informações e registros, fazendo algo maisdetalhado?

Pois bem... A minha Inesquecível de hoje se chamava Epfânia de Ogun. Uma senhora bem magrinha de passos ligeiros, que sempre caminhava com seu “mokó” – bolsa de palha trançada – debaixo do braço, local onde, cuidadosamente, colocava as folhas que catava para os rituais, além de outras coisinhas que carregava ali dentro – só os mais antigos saberão [risos]. Além de seu mokó, tia Epfânia sempre levava consigo uma enorme vara de bambu, que utilizava para alcançar as folhas das grandes árvores, como a cajazeira. Iniciada por Mãe Senhora, seu orukó era Ogun Idà – A Espada de Ogun. Astuto e com movimentos rápidos, o Ogun de tia Epfânia bailava por todo o barracão. Devido a sua leveza e agilidade com a espada era conhecida como Ogun menino.

Foto: Divulgação

O registro fotográfico que tenho de tia Epfânia é o print de um filme que ela participou como figurante em 1977 – uma adaptação do romance de Jorge Amado publicado em 1969: Tenda dos Milagres. Nesta película, consigo reconhecer algumas pessoas daqui do Opô Afonjá, tais como: tia Celina de Oxun e outra tia – que estou na dúvida se é tia Sofia de Iansã ou tia Clarice de Omolú. Na trama, ainda temos: Janete Ribeiro, filha da saudosa Detinha de Xangô, lembrada aqui nesta série- Akọ̀wé Ṣángò: a Secretária de Xangô - Bahia | Farol da Bahia. Janete interpretou Rosa de Oxalá, no filme.

Voltando à tia Epfânia, tem um episódio da vida real que aconteceu comigo e que lembro com muita saudade. Travesso e curioso que era, eu ficava observando tia Epfânia quando caminhava pela roça. Sempre com seu mokó, ela saia da roça e ia até a quitanda do finado Lau. Ali, ela comprava querosene, fumo e cachaça. Ops: falei uma das coisinhas a mais que ela carregava no mokó [risos]. Ela sempre ficava proseando com seu Lau, pra depois ir ao armazém comprar mantimentos pra casa. Antigamente, nesses armazéns, essas mantenças eram compradas por medidas: medida de óleo; medida de querosene; um pedacinho de carne de sertão; a unidade do ovo, etc... E, assim, tia Epfânia fazia seu mercado e voltava pra casa. A minha curiosidade em saber onde ela guardava aquela enorme vara de bambu me consumia, pois na minha cabeça a casinha onde ela morava não tinha onde guardar uma vara daquele tamanho.

No ínterim dela sair de casa, ir a seu Lau e depois no armazém, eu tive a brilhante ideia em pular o muro de sua casa pra investigar tal caso. A casinha era bem humilde. Chão batido, porta sem tranca, telhado com as cerâmicas bem velhinhas e os cômodos de meia parede. Logo ao entrar, vi a vara. Ela ficava no canto da parede, começando na porta da frente indo até a porta do fundo. Mas, como já estava ali, fui bisbilhotar a casa da velha Epfânia. Além da minha curiosidade, existia a lenda de que ela pegava crianças e colocava no saco – tal como a ‘velha do saco’. Alguns meninos da escola tinham medo dela, devido a tal lenda urbana. Hoje eu, homem feito, vejo-me rememorando tal fato e chego à conclusão que, ainda que tivesse a certeza de que ela não era a tal ‘velha do saco’, vejo que, no fundo, eu acreditava nisso! Que nem coisas de criança e, talvez por isso mesmo, tenha ido bisbilhotar a casa dela. 

A casa era bem arrumadinha. Apesar do chão de barro batido, tinha muitas folhas de pitanga no chão, o que deixava a casa bem cheirosa. Logo na entrada era a cozinha – a pia com as panelas bem areadas penduradas na parede, um velho armário, um filtro de barro e uma mesa de abrir e fechar com quatro cadeiras. Em seu quarto tinha uma cama e um guarda-roupa daqueles bem antigos – do tamanho dela [risos]; o banheiro e uma pequena sala com uma cadeira de balanço, um velho baú e um banquinho – acredito que era o que levava pra o Ipadê. Caros leitores acreditem: naquela casa tão pequena, não conseguia sair. Ficava indo da frente ao fundo sem conseguir sair da casa, mesmo sabendo que a qualquer momento ela poderia chegar, estava ali procurando o que não existia. E, para o meu azar, tia Epfânia chega: entrei em desespero. Não tinha lugar onde me esconder. Foi quando, antes mesmo de ela fechar a porta, tirei a camisa, joguei no rosto e saí picado. Ela deve ter tomado um susto danado.

Eu acho que ela sabia que o invasor era eu, pois quando ela aparecia, eu corria para me esconder. Percebia também que quando ela me via e eu não tinha pra onde correr, ela ria. Dias depois da invasão, ela me chamou: “Ô menino de Stella, vá lá em Lau comprar uma medida de gás – querosene pra mim.” Todo sem graça, baixei a cabeça e fui prontamente. Quando retornei com a garrafinha dela com o querosene, ela disse: “Pode entrar. Você é da casa. Meu irmão de cabeça!”, e sorriu. Daí, disse que estava com pressa, pois ia comprar pra minha mãe. Ela não perdeu tempo: “Igual ao dia que você saiu correndo daqui de casa?”. Procurei um buraco pra me esconder, mas confessei o motivo da invasão. Ela sorriu, me abençoou e disse: “Vá vê sua mainha!”

O dia que tia Epfânia partiu para o Orun foi tão triste, mas a sua imagem sorrindo pra mim é o que ficou guardado.

Viva a Ogun menino!
 


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