Adriano Azevedo

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O processo de resgatar algumas memórias dos Inesquecíveis que viveram e tanto nos ensinaram aqui no Opô Afonjá tem me dado muito trabalho, como já falei aqui. Sigo lutando para reavivar as memórias dos que merecem nosso aplauso e reconhecimento. Algumas lembranças tendem a cair no esquecimento a partir do momento que estas pessoas se transformam em Ancestrais. E, para além do desleixo, existe o desconhecimento real da vida externa de algumas pessoas, principalmente aqueles mais antigos que eram bem reservados e que nem de fotografia gostavam. Dito isto, o meu Inesquecível de hoje não terá seus dados biográficos completos. No entanto, tenho muitas recordações dele, pois foi minha grande referência dentro do contexto do encantamento dos animais a serem sacrificados. Estou falando de Renato Vieira das Neves.

Tio Renato, mais conhecido como Afikodé – título honorífico da casa de Oxossi – chefe do Aramefá:confraria de seis homens que determinam as diretrizes do culto a Oxossi, nasceu em 02 de julho (não consegui a informação sobre o ano). Era também o Axogun – pessoa responsável pelo sacrifício animal. Frequentava o Opô Afonjá desde a época de Mãe Anninha: foi levado para o Terreiro por sua mãe, que era iniciada por Mãe Anninha e que também era muito amiga do velho Martiniano Eliseu do Bonfim. Tio Renato era um homem muito respeitado. Lembro de ver tia Stella tomando a bênção a ele e chamando-o de pai. Ele foi o Ojubonã de meu pai – foi ele quem cuidou de Seu Adriano no quarto de Axé. 

Lembro de uma passagem quando meu pai estava recolhido – em confinamento devido à iniciação da vida para o Orixá: eu deveria ter uns 8 pra 9 anos de idade. Eu estava com muita saudade de meu pai. Então, fui até a casa de Oxalá a fim de vê-lo. Eu sabia que não poderia ter contato com ele, então,pulei a janela e entrei na sala de Oxalá. Bem baixinho, comecei a chamar: “Pai, meu pai, o senhor ta aonde?” quando, pra minha surpresa, uma porta se abre, e meu pai – com um ojá branco cobrindo a cabeça – colocou só a ponta do rosto pra fora dizendo: “Ô menino, tá fazendo o quê aqui? Você entrou como?”. E respondi que estava com saudade. Ele sorriu e disse que também estava com saudade de mim, mas que eu não poderia estar ali. Disse que estava bem e que em mais alguns dias nos abraçaríamos novamente. De repente, tio Renato aparece. Ele não me disse nada. Mas só o medo de levar bronca me levou a sair correndo e pular a janela de volta pra casa.

Outra passagem inesquecível foi o dia do Boi de Oxossi. Era véspera de Corpus Christi, eu já estava crescido e autorizado a acompanhar os mais velhos. Estávamos indo para o sacrifício do boi. Eu aprendia fazer matança vendo tio Renato em ação: ele era Mestre nesta função. Neste dia específico, o boi estava muito agitado. Quando o vaqueiro conseguiu laçá-lo, tio Renato colocou a mão na testa do bicho e começou a falar algumas coisas. A respiração do boi– que estava tão ofegante que chegava a babar – começou a diminuir e ele foi ficando menos agitado. Achei aquilo mágico. Depois de ele conversar com o animal, parecia que o bicho tinha entendido que aquele ato se fazia necessário e o sacrifício aconteceu sem problemas. Tio Renato tinha muito Axé! Ele fazia dupla com outro grande Mestre: tio Américo de Iemanjá. Esse era mais ranzinza [risos]. Mas também foi uma grande referência em minha formação sacerdotal.

Osvaldo Pita de Oxoguian, filho de santo de Mãe Stella, conta que chegou ao Opô Afonjá trazido por tio Renato. Algumas das informações biográficas do velho Afikodé eu devo ao Egbome Osvaldo, pois ele teve um largo convívio com o Mestre.

Segundo Osvaldo, tio Renato era tipógrafo do Mosteiro de São Bento. Osvaldo lembra que tio Renato contava que tinha dias que, no final da tarde, Mãe Stella, Haidê e Celina de Oxun iam visitá-lo no trabalho, para que – após o expediente, fossem fazer farra. Osvaldo conta que tio Renato se casou três vezes. No primeiro casamento – o oficial – teve 4 filhos e morou em Altos das Pombas, na Federação. Após se separar, amasiou-se com uma senhora chamada Roxinha. Sua terceira união foi com uma senhora chamada Aidê e, com ela, teve mais dois filhos: um casal, morando, então, no Alto da Santa Cruz. Neste ínterim, tio Renato teve um AVC ficando com um lado do corpo paralisado, passando, por conseguinte, a precisar de cuidados especiais. Infelizmente a morte chegou pra dona Aidê. Dona Roxinha – eu acredito que ainda apaixonada pelo velho Renato, então, o levou para morar com ela: um ato de quem gosta de verdade. Mas como Iku – a morte – nunca dorme, levou dona Roxinha também. Foi quando tio Renato manifestou a vontade de morar no abrigo, e aí, Osvaldo passou a ser seu responsável. Osvaldo visitava-o semanalmente e sempre estava apostos quando precisava.

Tio Renato era bem requisitado em outros Terreiros. Sempre disposto, estava pronto pra ajudar. Viajava sempre com Mãe Stella. Ano após ano, no dia que antecede Corpus Christi, acontece o “dia do Boi de Oxossi”. Outro momento memorável que tenho de tio Renato aconteceu exatamente neste dia [veja aqui: O boi de Oxossi - Adriano Azevedo | Farol da Bahia].

Tio Renato voltou às origens em 08 de fevereiro de 2002, deixando muita saudade e um legado gigantesco.

Salve o Mestre Afikodé.

 


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